Se um obstáculo cruzasse o caminho da sua empresa e só você, líder, pudesse enfrentá-lo, qual seria sua estratégia para dar a volta por cima?
Meio esquisita a pergunta, né? Primeiro porque o “se” é um caminho muito complicado; no campo das hipóteses, tudo é válido, inclusive respostas que, na vida real, não se concretizariam. Fora que a primeira coisa que muitos líderes vão pensar ao ler a pergunta é: “ora, eu precisaria entender que obstáculo é esse, fazer estudos, testes e validações para reposicionar meus negócios da forma correta”.
Contudo, faça aqui, comigo, um breve exercício de imaginação: você lança um produto ou serviço e, mesmo que tenha se preparado para todas as adversidades possíveis do processo, tem um detalhe que atinge o calcanhar de Aquiles. O obstáculo é tão inesperado que não há precedentes, no seu mercado, de como sobreviver a ele. Cabe a você, o líder, tomar decisões – o que significa, muitas vezes, arriscar a própria pele. Se der certo, vai dar muito certo; mas, se der errado, sua carreira chega ao fim.
Agora você deve estar pensando: eita, Andrea! Hoje você tá que tá…
Mas eu não quero te colocar contra a parede a troco de nada. Quero te contar, brevemente, a história de um líder que passou exatamente por esse cenário e arriscou todas as fichas para sobreviver ao obstáculo. Trata-se de um fato real que pode nos ensinar inúmeras lições sobre liderança pós-covid, e nos inspirar em tempos tão incertos como o que vivemos.
Na semana passada, falei aqui sobre os tipos que podem acometer as empresas e como o setor de aviação nos ensina a aprender com as falhas. O que vem a seguir é o que eu aprendi com um acidente de avião ocorrido há onze anos.
Chesley Sullenberger, o herói do Hudson
Em 15 de janeiro de 2009, o voo 1549 da empresa US Airways saiu do aeroporto LaGuardia, em Nova York, e seu destino era Charlotte, no estado da Carolina do Norte. Era uma manhã normal para os padrões do capitão Chesley Sullenberger, com quase 30 anos de aviação, e sua equipe de bordo: céu limpo, tempo estável, mesmo no rigoroso inverno do hemisfério norte. Contudo, a viagem, que duraria algumas horas, acabou após apenas seis minutos.
Ao invés de estar no aeroporto da Carolina do Norte, o voo 1549 pousou no Rio Hudson, que cerca a ilha de Manhattan.
O que levou ao incidente foi o choque com uma formação de gansos – o que não é incomum na aviação, já que aviões e pássaros disputam o mesmo espaço. Contudo, nesse dia, o impacto foi tamanho que a aeronave perdeu potência em ambos os motores. Era preciso fazer um pouso de emergência, mas o capitão Sully calculou que seria impossível voltar a LaGuardia ou pousar no JFK, outro aeroporto de Nova York, a tempo.
A única saída provável seria um pouso nas águas do Hudson. Embora os manuais de aviação, os manuais técnicos das aeronaves e até os vídeos de segurança antes dos voos nos avisam o que fazer em caso de pouso forçado na água, lembrando que nosso assento vira uma boia salva-vidas, até então não havia nenhum precedente de sucesso, na história da aviação mundial, de um pouso de emergência em água com aviões comerciais.
É por isso que muita gente envolvida nos acontecimentos daquele 15 de janeiro fala que a última mensagem de Sully antes do pouso – “estaremos no Hudson” – soou como uma despedida. Ele fez a melhor escolha que tinha em mãos e, mesmo assim, ela não era garantia de sucesso.
Mas, nesse caso, a história tem um final feliz: o gigante de aço estacionou no Hudson, não pegou nenhum barco pelo caminho e todas as 155 pessoas a bordo sobreviveram. Nenhuma teve ferimentos graves. A perícia com que Sully conduziu o pouso chamou a atenção e, claro, acendeu alertas da aviação: será que a manobra tinha sido feita sem necessidade?
Afinal, vamos considerar aqui que, embora as vidas humanas não tenham preço, a US Airways precisou desembolsar uma franquia interessante de seguro para tirar um avião do meio do rio… alguém teria que se responsabilizar por isso. Se fosse possível provar que Sully poderia ter pousado em algum dos aeroportos, a história teria sido diferente.
Bom, a essa altura você já deve ter percebido que ele conseguiu provar, em comissões de segurança aeronáutica, que essa era a única decisão capaz de salvar as vidas a bordo e não aumentar a contagem de mortos, caso o avião descesse no meio da cidade de Nova York. Sully ficou conhecido como “herói do Rio Hudson” e, em 2016, ganhou filme com seu nome estrelado por ninguém menos que Tom Hanks.
Lições de liderança com Chesley Sullenberger
O capitão se aposentou em 2010 e, a partir daí, foi convidado a dar inúmeras palestras e opiniões sobre segurança de voo para canais de televisão. E, para nossa sorte, suas atitudes naquele invernal 15 de janeiro de 2009 também podem nos inspirar sobre que tipo de líder nós queremos ser.
Vamos lá?
#1 Tecnologia guia processos; humanos guiam decisões
Assistir ao filme Sully nos dá uma noção muito boa dessa premissa, porque ele mostra, graficamente, que o capitão e o copiloto leram os manuais da aeronave e pediram suporte da torre antes de bater o martelo na decisão.
Perceba que eles tinham, nas mãos, uma máquina de última geração, altamente testada, aprovada em todos os sentidos, com um manual claríssimo de instruções e que, mesmo assim, não lhes dava o passo a passo do que fazer caso a aeronave se chocasse com um grupo de gansos a 800 metros de altura.
É indispensável levar isso para a rotina do líder: o ambiente digital, os recursos tecnológicos, vão facilitar e, até mesmo, possibilitar que façamos progresso nas empresas, mas não são as máquinas que tomarão decisões quando algo der errado. As máquinas não vão te falar o que fazer quando colaboradores estiverem insatisfeitos ou o concorrente lançar uma solução que coloca a sua no chinelo. Não é assim que funciona – e entender isso é o primeiro passo para tirar o melhor proveito possível das ferramentas à nossa disposição.
#2 O processo é todo permeado pelo fator humano
Na sabatina da comissão de segurança aeronáutica, inúmeros especialistas conduziram testes que apontaram que, sem sombra de dúvidas, Sully poderia ter pousado o avião em um aeroporto próximo. Os testes foram feitos nos simuladores mais precisos, com pilotos experientes.
Depois de assistir às simulações, ao vivo, o capitão fez uma ressalva. Ele disse: “vocês estão simulando algo porque sabem exatamente como tudo aconteceu; não estão levando em consideração que, enquanto acontecia, nós não tínhamos as respostas que vocês têm hoje”.
A comissão, então, perguntou quanto tempo a mais de simulação seria preciso e Sully disse que dois minutos entre o choque com os pássaros e a tomada de decisão do pouso era algo factível. Contudo, os especialistas disseram que não iriam adicionar esse tempo todo na simulação, e deram aos pilotos de teste 30 segundos a mais.
Embora seja um tempo menor de resposta do que aquele que o capitão teve no dia 15 de janeiro, esses 30 segundos foram o suficiente para que as simulações mostrassem resultados catastróficos, incluindo o choque do avião em prédios da ilha de Manhattan.
Com isso, podemos entender que a tecnologia pode ser sofisticada, os processos podem ser organizados, mas, se um obstáculo surge absolutamente do nada, e não há precedentes para ele, o líder vai levar algum tempo para pensar a respeito. Esse fator humano é imprescindível para evitar o desespero limitante e a tomada de decisões inócuas, que resultem no pior cenário.
Em outras palavras, o fator humano faz parte do processo e não deve ser ignorado em tempos adversos. Ao contrário: precisamos dar aos humanos no controle o que eles precisam para fazer o melhor que podem.
#3 Com grandes poderes vem grandes responsabilidades
Quem é nerd sabe que essa frase é dita pelo tio Ben, nas histórias do Homem-Aranha, mas também pode se aplicar à experiência de Sully e a nossa própria, enquanto líderes. Afinal, quem está no controle não é responsável apenas por tomar uma decisão, mas por justificá-la.
Lembra quando falamos da sabatina que o capitão enfrentou? Ele e o copiloto foram os únicos a serem questionados sobre a decisão do dia 15 de janeiro. Ninguém chamou os criadores de gansos para responsabilizá-los, os arquitetos por responsabilizá-los por tantos prédios no meio da cidade, os engenheiros que construíram aeroportos distantes: os únicos que estavam sendo julgados pelas consequências da escolha foram aqueles que fizeram a escolha.
Vejo que muitos líderes abraçam a premissa de levar todas as balas pelo time, já que estão no comando das equipes, mas nem sempre a prática segue a teoria de forma tão honrosa. Às vezes, queremos culpar inúmeros fatores externos por algo que não tenha dado certo ou recolher todos os louros da fama daquilo que gerou reconhecimento. Em ambos os casos, estamos sendo apenas… humanos.
É mais confortável, para o ser humano, saber que o que quer que tenha sido, não foi sua culpa, ou que o menor sucesso teve seu dedinho de contribuição.
O fator humano da vaidade é o único que devemos esquecer na rua quando entramos na empresa. Os líderes estão em suas posições justamente para tratar os membros do time como pares, mas, ao mesmo tempo, se levantar para assumir as consequências de suas decisões.
Isso nos leva à próxima lição de liderança:
#4 Ter pulso firme não é o mesmo que ser arrogante
Ao fim da sabatina da comissão de segurança, focada majoritariamente em Sully, uma das responsáveis pelas investigações fez uma pergunta direcionada a Jeffrey Skiles, copiloto do voo 1549: “até aqui, ouvimos o que seu capitão teve a dizer, mas quero saber do senhor o que faria de diferente nesse cenário”.
Em outras palavras, ela disse: ouvi seu superior imediato, ok, ele tem a opinião dele, mas qual é a sua? Se você fosse o líder daquela situação, o que teria feito de diferente?
Ele respondeu: “eu teria mudado a data do voo para junho”, já que, em junho, no alto verão, as águas do Rio Hudson não estariam tão geladas quanto em janeiro.
A brincadeira de Jeffrey nos mostra algo que toda a equipe fala sobre o capitão Sully: toda a equipe confiava tanto em seu líder que não fariam absolutamente nada diferente, a não ser desejar outra estação do ano.
No filme e nos livros lançados sobre o acidente vemos um homem experiente, com sólida carreira na aviação, a maior autoridade dentro da aeronave, que solicitou a ajuda do colega imediato, de outros colegas remotos, que tomou uma decisão de literal vida ou morte para todos aqueles sob sua responsabilidade e que manteve a calma até o fim.
E que não saiu bradando impropérios quando foi questionado sobre a sua decisão.
Quantas vezes na carreira o líder tem o impulso de dizer “você sabe com quem está falando?”, ou “eu tenho anos de experiência a mais que você”, “não preciso de sugestões de subordinados”, dentre outras coisas nesse sentido? A diferença entre um verdadeiro líder e um “chefe” é que o líder se segura nesses momentos, e não só porque precisa ser polido, mas porque ele sabe que o aprendizado empresarial é uma via de mão dupla.
Pulso firme é saber conduzir o processo de uma tomada de decisões, por mais difícil que ela seja, sem deixar a peteca cair – ou seja, sem se desesperar e desesperar os outros, sem mentir ou, como dizem por aí, sem “dourar a pílula”. Ser arrogante é ser, simplesmente, uma pessoa desagradável que acha que sabe de tudo e que, se der errado, não é culpa dela, afinal, ela tem séculos de experiência nessa área. Pior: a arrogância é o empecilho fundamental para que o líder tenha a mente de principiante, que é tão importante em cenários de obstáculos sem precedentes, como esse que enfrentou o capitão Sully.
#5 O ponto de não-retorno é real
Em qualquer cenário de decisão nos deparamos com o ponto de não-retorno, ou o momento que nos mostra que, independentemente do resultado a seguir, não há como voltar atrás e escolher outra coisa.
Quando Sully começou o procedimento de pouso no Hudson, sem dois motores, ele já estava nesse momento. Digamos que, cem metros antes de bater a barriga da aeronave nas águas geladas do rio, ele pensasse: “ah! Lembrei de algo que pode ser mais interessante que pousar no rio!”. Já era, não daria mais para voltar atrás.
No mundo corporativo, nos deparamos com esse ponto várias vezes, mas comumente insistimos em fingir que ele não existe e que tudo pode ser refeito à revelia.
Vamos tomar a transformação digital como exemplo: muita empresa passou anos acreditando que o ambiente digital era uma onda, “modinha”, não era algo que necessitava de estudo e investimento. Aí, 2020 veio para ser o ponto de não-retorno de todos nós, já que a pandemia mostrou que o ambiente digital foi a única saída para muitos negócios e acabou implodindo tantos outros.
Percebe que, daqui pra frente, não estar no digital deixa de ser uma escolha para ser um erro grotesco de administração?
Muita gente acha que refazer caminhos é fácil. Case-se, mesmo que não seja com a pessoa que você ama, pois se divorciar é fácil. Abra uma empresa, mesmo que não tenha um modelo de atuação, pois decretar falência é fácil. Deixe para amanhã o que você poderia fazer hoje, porque fazer amanhã, por algum motivo, é bem mais fácil. Exemplos assim ilustram decisões diárias de vários líderes.
Que tal pensar, a partir de agora, no seu ponto de não-retorno? Ele pode aguçar seu senso de urgência, prioridade, responsabilidade e te educar a tomar decisões cada vez melhor fundamentadas.
#6 O líder apaga a luz
Uma das cenas mais incríveis do filme Sully, e que se baseou nos relatos da tripulação, é a que mostra o capitão andando até o final do avião, com água já na altura dos joelhos, abrindo as portas dos banheiros e olhando por debaixo dos bancos inundados. Uma das aeromoças diz: “capitão, saia, o avião pode afundar”, e ele responde: “preciso saber que todos saíram”.
Isso é o que se espera de um líder: ele é sempre o último a visualizar os feitos, para que possa se certificar, e certificar aos demais, que foi feito o melhor possível na situação apresentada. Líderes ficam para ver se alguém mais precisa de ajuda ou, simplesmente, para dar o dia como encerrado.
Isso significa que o líder tem que ser o último a sair da empresa, todos os dias? Não necessariamente. Mas o líder deve estar sempre ciente de que uma das características de sua posição é dar o exemplo. Assim, se você, enquanto líder, vê algo errado e fala “isso já não é problema meu, lavo minhas mãos”, talvez seja preciso rever seu posicionamento…
No fim, é tudo uma questão de ler o cenário
Esses exemplos de liderança inspirados no capitão Sully nos mostram que, todos os dias, em todos os setores, merd*s acontecem. O papel do líder é, sempre que possível, evitá-las; mas, frente ao inevitável, saber conduzir seu time acima dos obstáculos.
Tomar decisões de qualquer natureza não é uma atividade fácil. Contudo, se, na sua carreira profissional, você toma decisões todos os dias, isso significa que você fez uma escolha pelo caminho não tão fácil e que as pessoas ao seu redor confiam em você o suficiente para instruí-las. O mínimo que o líder pode fazer é merecer essa confiança da equipe e do público atendido pela empresa.
Dito isso, você tem lido corretamente os cenários que exigem decisões complicadas e, muitas vezes, impopulares? Ou será que você tem adiado acontecimentos importantes por medo de fazer uma manobra drástica, que pode dar errado ou salvar a empresa?
Gosto de usar a experiência do capitão Sully para refletir sobre a seguinte metáfora: todos temos uma rota, uma ferramenta para segui-la, uma responsabilidade para concluí-la e, como último recurso, temos um rio gelado. Se um obstáculo cruzar o caminho da empresa e a única saída for um pouso forçado no desconfortável e inexplorado rio, é melhor não ter medo da água.
Geralmente, a adversidade é justamente o tipo de situação que transforma capitães em heróis. Que tipo de herói você está preparado para ser?